Geralmente a culpa é da minha mãe, mas dessa vez percebo que
a culpa é toda sua, pai. Primeiro porque você me fez nascer mulher. Maldito
cromossomo x que você resolveu me dar. Já não bastava o cromossomo x da minha
mãe, você resolveu me dar um também. Ter dois cromossomos x é tipo ganhar dois
vestidos iguais. Tenho que inventar moda com um dos vestidos se eu quiser fazer alguma coisa com o vestido repetido.
Enfim. Aí acho que você quis se redimir por ter me feito
menina e pra compensar me deu todo o amor do mundo. Me fez acreditar que eu era
uma princesa. A mais bonita, a mais inteligente, a maior merecedora do universo de
todas as coisas boas. Eu acreditei, é claro, porque eu acreditava em tudo o que
você me dizia.
Eu acreditei quando você foi viajar de avião, e quando eu chorei
um céu de lágrimas porque você ia ficar uns dias longe (uns dias é tipo pra
sempre quando se é criança), você me consolou me dizendo que traria nuvens de
presente. E eu acreditei quando você me disse que não tinha trazido o punhado de nuvens prometidas porque as
janelas do avião estavam fechadas.
Eu acreditei quando você me prometeu dar um aquário de
presente se eu parasse de roer as unhas, e acreditei que você esqueceu de me
dar o aquário todos os dias até hoje. (Tá, até hoje também não, né, mas você sabe que mulher que se preze tem sempre que fazer um drama pra dar realidade à coisa)
Eu acreditei quando você me dizia que a minha dor
existencial era "dor de crescimento" e também quando você me prometeu ser meu pai por
toda a minha vida, embora fosse se separar da minha mãe. (Foi meio esquisito
entender que eu e a minha mãe não éramos uma só, e que era possível você se separar
de uma sem deixar a outra.)
Acreditei em todas as suas promessas, até nas que você não cumpriu, porque de algum modo, o que eu queria eram as promessas. (E ainda hoje é um pouco assim, não me importa se serei amada para sempre de verdade, mas eu bem gosto de ouvir que sim)
Acreditei em todas as vezes que você me disse que tudo ia ficar
bem, e de algum modo, tudo sempre se resolveu. Mas por sua culpa, vivo achando que as coisas não estão tão bem
quanto eu merecia. Porque você, paizinho, me fez acreditar que eu merecia as
melhores coisas do mundo e que isso viria fácil, simplesmente pelo fato de eu, princesinha, existir. Acreditei que vivia num mundo onde todos eram meus súditos e que eu era
a sua filha preferida. E agora dou-me conta de que você nunca me disse nada
disso. A única coisa que você fez nessa vida foi me amar. (E claro, pôr comida
em casa, pagar colégio, me levar pra aula e pro ballet, ir a todas as apresentações
da escola, às reuniões, etc e tal, "detalhes")
Então às vezes me pego, sem perceber, te odiando por ter me
amado de um modo único. Por sua culpa eu sempre serei um tantinho frustrada no
amor, porque nunca nenhum homem vai me amar como você. E por sua causa não amo
alguém que não merece o meu amor. O seu amor por mim tornou o meu amor seletivo
o suficiente pra só se concretizar na minha carne, quando me apareceu uma pessoa
tão digna de ser amada por mim.
Aí que assim, já que você me deu o cromossomo que me fez ser
mulher, muito obrigada por ter me ensinado a amar o amor a ponto de não entregá-lo
nas mãos de qualquer um. Porque é muito triste saber que muitas mulheres não
foram devidamente amadas pelos seus pais (ou por qualquer outro homem) , e então hoje entregam o que há de
mais precioso numa mulher (nada de órgão genital, é o amor, gente) nas mãos de
pessoas que não sabem ser amadas.
Então é isso, pai, obrigada pela dignidade que o seu amor me
deu. E muito obrigada por estar vivo para ler isso. (Embora você não vá ler, simplesmente porque eu não vou te passar o link)
(Tenho alma de adolescente toda vez que falo do amor, mas acho que ao falar do meu pai regrido ainda mais. Porque só sei amar sendo infantil e veadinha)