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domingo, 22 de maio de 2011

Incômodo existencial





O meu corpo não é um lugar confortável. É preciso que eu me esqueça da existência dele para que eu possa viver. Respiro sem perceber que os meus pulmões convocam o ar para dentro de mim. O meu coração bate sem que eu precise comandá-lo, como se nem meu fosse. Como antes que a fome me avassale, para que não me seja gravemente percebida. Bebo para não lembrar que a minha garganta existe, e que aliada ao meu pescoço, separa a minha cabeça do resto do meu corpo. Tenho necessidades fisiológicas, às quais obedeço rapidamente para não lembrar por um longo tempo o quão escrava do meu corpo eu sou.
É isso. Sou escrava das minhas células. Porque eu não me identifico ao meu corpo, mas à minha alma. Eu sou alma materializada em um punhado de exstência física. E é o meu corpo quem me aniquila.
Saem lágrimas dos meus olhos quando acho irracional chorar. Salivo a boca quando vejo um par de sapatos bonitos. Meus pêlos eriçam-se todos quando vejo declarações de amor que considero ridículas, quando não, mentirosas. Os meus lábios rasgam-se para os lados, soltando gargalhadas, quando acho que estou é nervosa. Pensamentos mal-educados me invadem quando eu imagino que o quero é outra coisa.
Alma e corpo são coisas que se misturam e não se encaixam, são pura falta de equivalência. Se sobra-me o corpo torno-me escrava das necessidades. Se sobra-me a alma torno-me escrava dos meus desejos. Porque desejo é a inscrição de que no corpo, há mais do que matéria física. Necessidade é a inscrição de que a alma está alienada a um corpo.


Já não sei –e nunca soube – se sou corpo ou se sou alma. E não me venha com essa historinha pra boi dormir de que sou as duas coisas. Sei que não sou. Não ao mesmo tempo. Só sei me alternar entre ser uma e ser outra, e não bastasse isso, ainda não sei ser completamente uma coisa ou outra. Não sei me entregar. Porque me entregar seria morrer. Para me manter viva, é preciso que eu seja nem toda isso, nem toda aquilo. Você pode me dizer que o mais ou menos te incomoda, mas eu te digo, meu bem... É o mais ou menos que me faz viver. Eu sou morna, que é para não ser morta. E eu garanto. Ser morna dói. Porque só a morte anestesia.

24 comentários:

Ayanne Sobral disse...

Você é não-toda. Você é corajosa.
Já deu para perceber isso.

Você acabou de transformar em texto o que tento entender há um tempão.

Você conseguiu deixar o meu dia mais leve ao me fazer perceber que eu não estou sozinha nessa opção de viver de dor pra não morrer.

Corpo e alma não se encaixam, mesmo. Mas algumas, raras, pessoas têm alma tão grande que é simplesmente impossível ser uma coisa só. Ora corpo, ora alma.
Você é assim: não-toda.

Obrigada por escrever. Obrigada.

PauloSilva disse...

Meu Deus!

Que lindo! Você é mistura de corpo com alma, sem dúvida.

Camila Lourenço disse...

Alícia
Ser quente, ser fria tb dói. eu n sei ser morna. Sou estragada. Sou um chuveiro que ou é quente, ou frio. Mas dp entram até acham normal a temperatura. E sabe?Ser isso tb dói. Na real, td dói. Ser quente, ser frio, ser morno. Depende do dia que paramos pra analisar.

Beijo

Teresinha Oliveira disse...

Morna? Estás fervente...

Junior Gros disse...

A vida dói, no corpo, na alma. A morte temporaria de um deles é um bom analgésico para o outro.
Adoro seus escritos.

Carol Viana disse...

É o caminho do meio! O famoso e difícil equilíbrio... que muitos achama chato e por vezes se faz necessário... o "nem lá nem cá"

Lívia Azzi disse...

Por toda nossa vida, nunca obteremos prazer absoluto.

Comecei a ler um livro do Násio, essa tensão interrupta e penosa que sentimos, e que o aparelho psíquico tenta em vão abolir, foi chamada por Freud de desprazer efetível e incontornável...

;-)

cafundó disse...

Um texto cortante, ainda tô pensando...

A.S. disse...

"Se sobra-me o corpo torno-me escrava das necessidades. Se sobra-me a alma torno-me escrava dos meus desejos."

Ah!... como é cativante esse cativeiro!!!


Beijos meus,
AL

G.Pereira disse...

Estou a pensar...

Vulgarizando disse...

Não sei o que dizer, é lindo.

Thaís Alves disse...

http://talves02.blogspot.com/2010_03_01_archive.html Beijos

Talita disse...

Gostei muito do paralelismo que você traçou.
Fiquei também a me perguntar o que eu sou... do que sou feita, se é que sou...

Beijo!

Talita
História da minha alma

Raquel Amarante disse...

Alícia,
Seu texto é cinestesia pura...

maria disse...

Não senti o morno...
senti o calor de saber quem se é!

adorável...
beijos!

Camila Lourenço disse...

Ser morna dó. Ser quente tb, ser fria tb.
Acho que tudo tem um quê de dor...só que tem dias que a gente tá anestesiada e nem sente.


Já tem alguns dias que tava tentando comentar e nunca conseguia.
Amo a forma que vc pensa, apesar de vc ser um tanto qnt bipolar no tt e apagar o que fala pra mim dp.¬¬ Rs. Feia.rs

Bjo!

Anônimo disse...

Olá foi a 2ª vez que li a tua página e adorei muito!Bom Trabalho!
Até à próxima

Gabriella Beth Invitti disse...

"Como é que a alma entra nessa história? Afinal, o amor é tão carnal..." (Zeca Baleiro e Fernando Abreu)

Andreza Salvio disse...

sempre me identifico com seus textos ;*

Vilmar Barros de Oliveira disse...

Adoro ler vc!
Beijo

Karola disse...

sei bem como é essa sensação
"insustentável leveza do ser"

Guilherme Antunes disse...

Diz o filósofo que ser humano é ponte entre o universo pedra, a vida animal, e o universo dos anjos. Existir é se incomodar, é vir-a-ser, é buscar. Você é ambos, corpo e alma. E isso é delicioso... ;)

Anônimo disse...

Terminei a leitura do post e a primeira coisa que me ocorreu foi: "cadê o meu corpo"?

Nanda disse...

Atrevo-me a dizer que vc é corpo raríssimas vezes... te vejo quase sempre alma...

E uma alma sublime!!!!