O meu corpo não é um lugar confortável. É preciso que eu me esqueça da existência dele para que eu possa viver. Respiro sem perceber que os meus pulmões convocam o ar para dentro de mim. O meu coração bate sem que eu precise comandá-lo, como se nem meu fosse. Como antes que a fome me avassale, para que não me seja gravemente percebida. Bebo para não lembrar que a minha garganta existe, e que aliada ao meu pescoço, separa a minha cabeça do resto do meu corpo. Tenho necessidades fisiológicas, às quais obedeço rapidamente para não lembrar por um longo tempo o quão escrava do meu corpo eu sou.
É isso. Sou escrava das minhas células. Porque eu não me identifico ao meu corpo, mas à minha alma. Eu sou alma materializada em um punhado de exstência física. E é o meu corpo quem me aniquila.
Saem lágrimas dos meus olhos quando acho irracional chorar. Salivo a boca quando vejo um par de sapatos bonitos. Meus pêlos eriçam-se todos quando vejo declarações de amor que considero ridículas, quando não, mentirosas. Os meus lábios rasgam-se para os lados, soltando gargalhadas, quando acho que estou é nervosa. Pensamentos mal-educados me invadem quando eu imagino que o quero é outra coisa.
Alma e corpo são coisas que se misturam e não se encaixam, são pura falta de equivalência. Se sobra-me o corpo torno-me escrava das necessidades. Se sobra-me a alma torno-me escrava dos meus desejos. Porque desejo é a inscrição de que no corpo, há mais do que matéria física. Necessidade é a inscrição de que a alma está alienada a um corpo.
Já não sei –e nunca soube – se sou corpo ou se sou alma. E não me venha com essa historinha pra boi dormir de que sou as duas coisas. Sei que não sou. Não ao mesmo tempo. Só sei me alternar entre ser uma e ser outra, e não bastasse isso, ainda não sei ser completamente uma coisa ou outra. Não sei me entregar. Porque me entregar seria morrer. Para me manter viva, é preciso que eu seja nem toda isso, nem toda aquilo. Você pode me dizer que o mais ou menos te incomoda, mas eu te digo, meu bem... É o mais ou menos que me faz viver. Eu sou morna, que é para não ser morta. E eu garanto. Ser morna dói. Porque só a morte anestesia.
Já não sei –e nunca soube – se sou corpo ou se sou alma. E não me venha com essa historinha pra boi dormir de que sou as duas coisas. Sei que não sou. Não ao mesmo tempo. Só sei me alternar entre ser uma e ser outra, e não bastasse isso, ainda não sei ser completamente uma coisa ou outra. Não sei me entregar. Porque me entregar seria morrer. Para me manter viva, é preciso que eu seja nem toda isso, nem toda aquilo. Você pode me dizer que o mais ou menos te incomoda, mas eu te digo, meu bem... É o mais ou menos que me faz viver. Eu sou morna, que é para não ser morta. E eu garanto. Ser morna dói. Porque só a morte anestesia.
24 comentários:
Você é não-toda. Você é corajosa.
Já deu para perceber isso.
Você acabou de transformar em texto o que tento entender há um tempão.
Você conseguiu deixar o meu dia mais leve ao me fazer perceber que eu não estou sozinha nessa opção de viver de dor pra não morrer.
Corpo e alma não se encaixam, mesmo. Mas algumas, raras, pessoas têm alma tão grande que é simplesmente impossível ser uma coisa só. Ora corpo, ora alma.
Você é assim: não-toda.
Obrigada por escrever. Obrigada.
Meu Deus!
Que lindo! Você é mistura de corpo com alma, sem dúvida.
Alícia
Ser quente, ser fria tb dói. eu n sei ser morna. Sou estragada. Sou um chuveiro que ou é quente, ou frio. Mas dp entram até acham normal a temperatura. E sabe?Ser isso tb dói. Na real, td dói. Ser quente, ser frio, ser morno. Depende do dia que paramos pra analisar.
Beijo
Morna? Estás fervente...
A vida dói, no corpo, na alma. A morte temporaria de um deles é um bom analgésico para o outro.
Adoro seus escritos.
É o caminho do meio! O famoso e difícil equilíbrio... que muitos achama chato e por vezes se faz necessário... o "nem lá nem cá"
Por toda nossa vida, nunca obteremos prazer absoluto.
Comecei a ler um livro do Násio, essa tensão interrupta e penosa que sentimos, e que o aparelho psíquico tenta em vão abolir, foi chamada por Freud de desprazer efetível e incontornável...
;-)
Um texto cortante, ainda tô pensando...
"Se sobra-me o corpo torno-me escrava das necessidades. Se sobra-me a alma torno-me escrava dos meus desejos."
Ah!... como é cativante esse cativeiro!!!
Beijos meus,
AL
Estou a pensar...
Não sei o que dizer, é lindo.
http://talves02.blogspot.com/2010_03_01_archive.html Beijos
Gostei muito do paralelismo que você traçou.
Fiquei também a me perguntar o que eu sou... do que sou feita, se é que sou...
Beijo!
Talita
História da minha alma
Alícia,
Seu texto é cinestesia pura...
Não senti o morno...
senti o calor de saber quem se é!
adorável...
beijos!
Ser morna dó. Ser quente tb, ser fria tb.
Acho que tudo tem um quê de dor...só que tem dias que a gente tá anestesiada e nem sente.
Já tem alguns dias que tava tentando comentar e nunca conseguia.
Amo a forma que vc pensa, apesar de vc ser um tanto qnt bipolar no tt e apagar o que fala pra mim dp.¬¬ Rs. Feia.rs
Bjo!
Olá foi a 2ª vez que li a tua página e adorei muito!Bom Trabalho!
Até à próxima
"Como é que a alma entra nessa história? Afinal, o amor é tão carnal..." (Zeca Baleiro e Fernando Abreu)
sempre me identifico com seus textos ;*
Adoro ler vc!
Beijo
sei bem como é essa sensação
"insustentável leveza do ser"
Diz o filósofo que ser humano é ponte entre o universo pedra, a vida animal, e o universo dos anjos. Existir é se incomodar, é vir-a-ser, é buscar. Você é ambos, corpo e alma. E isso é delicioso... ;)
Terminei a leitura do post e a primeira coisa que me ocorreu foi: "cadê o meu corpo"?
Atrevo-me a dizer que vc é corpo raríssimas vezes... te vejo quase sempre alma...
E uma alma sublime!!!!
Postar um comentário